quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

A hospedeira e a viajante

Não estava escondida naquela nota musical, nem nas pinceladas do quadro expressionista pendurado na parede da sala. Não estava na cena mais dramática do filme nem naquelas memórias que vinham enquanto a assistia.
Não estava naqueles diálogos, nem na falta deles. Não estava.
Não estava no silêncio, na casa vazia nem no poema do dia anterior.
Por mais incrível que possa parecer, estava na maneira como sorria. Era um bom lugar...Quantos a veriam ali? Poucos... Pouquíssimos... Talvez ninguém.
E foi com ela escondida entre seus dentes que entregou seu bilhete, subiu no trem e foi à procura de uma cabine vazia.
Existe lugar mais incomum para que se esconda uma tristeza do que um sorriso? Normalmente elas escolhem os olhos, mas esta em questão gostava de ficar assim... Camuflada, quase imperceptível frente à desatenção dos seres humanos e a mania de generalização (que era apenas um modo de tentar fazer o mundo caber neles).
Para olhos desatentos um sorriso é sempre sinal de alegria... E nesse caso isso funcionava. Era desagradável quando lhe faziam perguntas demais e a colocavam numa situação que a obrigava tentar explicar o que nem ela entendia.
Tinha esperança que durante a viagem fosse capaz de mastigá-la e cuspi-la para fora. Já tinha tentado isso outras vezes, e sempre acabava dando certo... Bom... Por algum tempo dava certo, até que ela encontrasse o caminho de volta e se alojasse entre o canino e o incisivo lateral superior.
Não era uma dessas viagens de fuga em que se deixa tudo pra trás num impulso e se esquece de deixar um bilhete em cima da mesa da cozinha... Era uma viagem que tinha volta. Durava cerca de uma hora e meia... Ou melhor, durava cerca de três horas e quinze minutos: uma hora e meia de ida, um intervalo de quinze minutos e uma hora e meia de volta. Talvez mais... Se contarmos os minutos de caminhada entre sua casa e a estação. Arredondemos para três horas e trinta e cinco minutos. No momento em que punha os pés para fora do portão a viagem começava.
Era um alívio andar por aquelas ruas de casas tão desiguais. Seria capaz de escrever um livro ( se tivesse habilidade para tal) só sobre aquela rua: a calçada, as árvores, os cachorros que latiam entre as grades dos portões. Quando criança era por ali que sempre passava montada em sua bicicleta vermelha com tatuagens de ferrugem.
Fazendo a janela de travesseiro ia olhando as árvores correrem e à medida que o trem se aproximava da cidade vizinha ela ia se afastando do presente.Aquelas viagens sempre lembravam a infância, e era disso que precisava...Esse era o seu truque para espantar a hospedeira. É verdade que a alimentava ainda mais por algum tempo, mas era só para poder mastigá-la bem...
E por que não a cuspia de uma vez? Porque quebrá-la em várias pedaços a mantia longe por mais tempo.

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P.S.

Talvez não faça nenhum sentido.
Talvez tenha uma parte II.
Talvez seja excluída.

Um comentário:

Anônimo disse...

faça a parte II

a.